O espanhol é um idioma global usado e falado por centenas de milhões de pessoas ao redor do mundo, além de ser o segundo mais estudado no Duolingo, depois do inglês! É uma língua oficial em mais de 20 países e tem representação na literatura, no cinema e na música, desde Dom Quixote até Encanto e Daddy Yankee. Recentemente, o espanhol alcançou o ápice da influência na cultura pop: Scarlet e Violet, os últimos jogos da franquia Pokémon, são ambientados em uma região inspirada na Espanha, e por isso neles você encontra muitas expressões e até comidas espanholas!

Como o espanhol se tornou o idioma que conhecemos hoje? Sua história é marcada por conquistas, mistura de culturas, reconquistas, padronização, mais conquistas e crescimento global. Quer saber mais? ¡Vamos!

O latim chega a um novo território

O espanhol é uma língua românica, como o português e o francês, mas a sua história começa muito antes da chegada dos romanos no que hoje é a Espanha. Desde cerca do ano 1100 AEC até o século III AEC, havia celtas, ibéricos (que deram nome à Península Ibérica), tartessos, aquitanos (que podem ter falado uma forma primitiva do basco) e povos que falavam idiomas coloniais, como o fenício e o grego.

Quando os romanos chegaram em 206 AEC, levaram a sua língua latina para a terra que chamaram de Hispânia. É desse nome que vêm as palavras Espanha (España) e espanhol (español). A maioria das palavras no espanhol moderno vem do latim, e muitas delas ainda refletem não só o idioma como também os valores culturais dos falantes dessa época. Um exemplo que talvez surpreenda você é o sal. Sal era um produto tão valioso no mundo romano que há muitas palavras baseadas nele em espanhol (assim como em português):

  • salario (salário): do latim salarius, uma cota mensal dos soldados para comprar sal;
  • salsa (molho): de salsus, “sal”;
  • ensalada (salada): de herba salata, “ervas salgadas”;
  • salchicha (salsicha): de salsicus, “temperado com sal”.

O espanhol sobrevive à queda de Roma

Após a queda do Império Romano no século V EC, os visigodos entraram na Península Ibérica e lá estabeleceram um reino. Eles falavam uma língua germânica (da mesma família que o inglês e o alemão), porém já interagiam com os romanos havia muito tempo e por isso também falavam latim (viva o bilinguismo!). Por essa razão, não obrigaram a população da região, que falava latim, a adotar o idioma deles. Assim, o latim falado na Ibéria sofreu relativamente pouco impacto desse outro idioma. Entretanto, há palavras e nomes de origem germânica que usamos até hoje no espanhol:

  • Palavras e conceitos germânicos: por exemplo, ropa (roupa), banda (bando, como um bando de guerreiros) e estaca (estaca).
  • Nomes germânicos: por exemplo, Álvaro, Fernando, Ramiro e Rodrigo. Os visigodos na Hispânia eram aristocratas, então os seus nomes tinham prestígio e eram frequentemente adotados pelos locais.
  • Terminações germânicas em nomes: a terminação -ez presente em muitos sobrenomes espanhóis vem dos visigodos (sério!). Ela era utilizada para indicar paternidade, então Álvarez eram os filhos do Álvaro, Fernández eram os filhos do Fernando etc.

Mais uma conquista: 700 anos de influência árabe

Em 711 EC, uma coalizão de muçulmanos da África do Norte, falantes de árabe, dominou os visigodos e assumiu o controle da maior parte da Hispânia. Os mouros (como eram denominados pelos europeus cristãos) chamaram os seus estados na Ibéria de Al-Andaluz, de onde vem o nome da região espanhola de Andaluzia (em espanhol, Andalucía)!

Durante os 700 anos em que viveram na Hispânia, os mouros moraram e trabalharam perto dos cristãos, que falavam um idioma românico. Há mais ou menos 4.000 palavras de origem árabe no espanhol, o que compõe cerca de 8% de todo o vocabulário nesse idioma! Muitas delas estão relacionadas a governo, cultura e mercadorias, como algodón (algodão), azúcar (açúcar), alcalde (prefeito), tarea (tarefa) e rincón (canto).

E muitas dessas palavras árabes na verdade abarcam duas palavras que foram unidas quando foram emprestadas para o espanhol, da seguinte forma:

  • Cristãos falantes da língua românica ouviam algo em árabe começado com a- ou al- (o artigo definido em árabe), como al-qut-tun (“o algodão”).
  • Eles não percebiam que o al- era só o artigo “o” ou “a” e não fazia parte da palavra para “algodão” — achavam que tudo aquilo era uma única palavra.
  • Então passavam a usar o conjunto todo no próprio idioma, dizendo “el algodón” para falar “o algodão”, usando ambos o artigo em árabe (al) e o artigo na sua língua românica (el)!

O castelhano ganha poder com a Reconquista

Poucos anos após a chegada dos mouros na Hispânia, os reinos cristãos no norte da península (que não havia sido dominado) deram início à Reconquista, uma campanha militar para retomar os territórios no sul. Nessa época, a língua ibero-românica local, que havia começado como um dialeto do latim, se tornou um idioma distinto dele.
O dialeto ibero-românico que se tornou o padrão durante a Reconquista veio do reino de Castela (Castilla, em espanhol), e por isso ficou conhecido como castelhano (castellano), palavra que até hoje muitos falantes de espanhol utilizam como sinônimo para esse idioma.

O espanhol se torna um idioma de fato

Ao longo da Reconquista, os documentos continuaram a ser transcritos em latim. Esse idioma agora era mais usado pelas elites econômicas e intelectuais, enquanto a maioria das pessoas tinha mais familiaridade com o dialeto castelhano que evoluía e ficava cada vez mais distante do latim.

Podemos ver a evolução desse novo idioma em documentos antigos escritos para pessoas comuns (quase como se fossem blogs da época). Por exemplo, as glosas dos séculos X e XI, ou seja, anotações manuscritas por monges nas margens de textos religiosos em latim, mostram que eles traduziam do latim “verdadeiro” e formal para algo mais parecido com o idioma ibero-românico que era compreendido pela população em geral.

Abaixo você pode ver uma comparação entre o texto original em latim das Glosas Emilianenses, a glosa ibero-românica escrita nas margens, o equivalente em espanhol moderno e a tradução em português. Você pode ainda ouvir uma gravação de como seria a pronúncia delas! O texto original em latim tem muitas abreviações, mas fica claro o quanto o espanhol mudou ao longo do tempo.

ORIGINAL EM LATIM GLOSA IBERO-ROMANICA ESPANHOL MODERNO TRADUÇÃO EM PORTUGUÊS
adjubante dño nro ihu xpo Con o aiutorio de nuestro dueno dueno χρο, dueno ʃalbatore, Con la ayuda de nuestro Señor Cristo, Señor Salvador, Com a ajuda de nosso Senhor Cristo, Senhor Salvador,
cui est honor et imperii cum patre qual dueno yet ena honore et qual duenno tienet ela mandatione con o patre Señor que está en el honor y Señor que tiene el mandato con el Padre Senhor que está na honra e Senhor que tem o comando com o Pai,
et spu sco in scla sclor con o ʃpu ʃco en oʃ ʃieculoʃ de lo ʃieculoʃ. con el Espíritu Santo en los siglos de los siglos. com o Espírito Santo pelos séculos dos séculos.
Amen facanoʃ dʃ ompeʃ tal serbitio fere ke denante ela sua face gaudioʃo ʃeyamuʃ. Amen. Háganos Dios omnipotente hacer tal servicio que delante de su faz gozosos seamos. Amén. Deus onipotente, que nós façamos tal serviço que diante de Sua face gozosos sejamos. Amém.

Em 1492, o espanhol se dissemina pelo mundo

Esse não foi apenas o ano em que Cristóvão Colombo (em espanhol, Cristóbal Colón) chegou às Américas, levando com ele o espanhol; foi também o ano em que a rainha Isabel de Castela e o rei Fernando de Aragão expulsaram todos os muçulmanos e judeus praticantes da Espanha, na Inquisição Espanhola. Os judeus sefarditas se estabeleceram pelo mundo, inclusive no norte da África, no Mediterrâneo e no oeste da Ásia. Sepharad significa “Espanha” em hebraico, e o idioma judeu-espanhol se disseminou com eles. As variedades do judeu-espanhol atual têm muitas semelhanças com o espanhol do século XV!

Foi também em 1492 que se publicou o primeiro livro de gramática espanhola, a Gramática de la lengua castellana escrita por Antonio de Nebrija. Essa foi a primeira gramática de um idioma europeu moderno!

O espanhol moderno continua a mudar e inovar

Nos séculos que se seguiram desde 1492, o espanhol se tornou a língua de mais de 548 milhões de pessoas. Depois que os judeus e muçulmanos falantes do idioma foram forçados a sair da Espanha, os espanhóis cristãos começaram a colonizar as Américas, e o seu domínio implacável disseminou o espanhol em outro hemisfério. Por meio do contato com os idiomas indígenas das Américas e a mudança gradual ao longo do tempo, surgiram novos dialetos do espanhol, reflexos dos traços culturais e linguísticos específicos de cada comunidade.

Conforme o espanhol cresceu enquanto língua mundial, em 1713 a Espanha estabeleceu a Real Academia Española (Real Academia Espanhola), ou RAE, para dar seguimento à padronização do idioma. Mas é claro que ele não para de mudar e evoluir! O espanhol continua a receber novas palavras por empréstimo — agora de uma variedade maior de idiomas —, assim como sempre ocorreu desde que o latim chegou à Península Ibérica.

Alguns dos idiomas que mais emprestaram palavras para o espanhol são o francês, o náuatle (uma língua indígena falada no México), as línguas aruaques (originárias do Caribe e América do Sul) e o inglês. Você pode se surpreender com quantas palavras náuatles também chegaram ao português! Veja alguns exemplos de empréstimos:

  • do francês: flecha (flecha), cadete (cadete), fusil (fuzil), banquete (banquete), parque (parque);
  • do náuatle: tomate (tomate), aguacate (abacate), chocolate (chocolate);
  • de línguas aruaques: maíz (milho), barbacoa (churrasco), huracán (furacão), canoa (canoa), arepa (tipo de pão à base de milho, como o que aparece em Encanto);
  • do inglês: béisbol (beisebol), cliquear (clicar), sandwich (sanduíche), internet (internet).

No entanto, a incorporação de novas palavras é apenas uma camada da evolução do espanhol desde a chegada nas Américas. Depois vamos escrever um post só sobre a diversidade dos dialetos latino-americanos do espanhol.

Mais recentemente, o espanhol tem estado em contato próximo com o inglês — especialmente nos EUA, onde milhões de bilíngues têm familiaridade com ambos os idiomas. Isso tem levado o inglês a receber várias palavras emprestadas do espanhol! Além dos alimentos latino-americanos mencionados acima, o inglês adotou conceitos culinários como tortillas, churros e salsa (olha aí uma daquelas palavras baseadas em sal!).

No espanhol, todo fluye (tudo flui)

Com origem no latim, o espanhol passou por fluxos, mudanças e evolução constantes nos dezoito séculos desde a chegada dos romanos na Península Ibérica até atingir a vasta população que fala espanhol ao redor do mundo hoje em dia. De um dialeto provinciano meio remoto, virou uma das 5 línguas mais faladas no planeta. E, passando de El Cid para Cervantes para Isabel Allende e agora para a franquia Pokémon, não parece que vai parar de crescer!